VII - O dia seguinte

O meu telemóvel está a tocar! Vou ter que me levantar! Que dor de cabeça! Será a minha mãe? Não me recordo se combinei ir almoçar à casa dela hoje...se não for ela vou ter que ligar à Sara, pelo menos a minha irmã compreende estes lapsos de memória! Ou iremos a casa do pai hoje? Vou ter que ligar à Sara, definitivamente! Merda, é o André!!! Não vou atender! Claro que vou atender! Parou...e agora?! Vou ligar. Não, primeiro vou tomar banho. Preciso de água, para lavar a alma e o corpo.
Estou pronta. Vou ligar ao André.
- Estou, André, ligaste?
- Sim.
- ...
- ...
Como o silêncio consegue, por vezes, perturbar mais do que as palavras... Sabíamos os dois exactamente o que estava a acontecer, mas não sabíamos o que dizer. Tomei iniciativa:
- Vamos almoçar. Precisamos de falar.
- Estás pronta? Estou à tua porta!
- Estás onde? És doido?! Estás aí há quanto tempo?
- Há tempo suficiente!
- Vou descer.

Entrei no carro dele, não tinha alternativa, o meu carro tinha ficado perto do Bairro. Cumprimentámo-nos civilizadamente, mas estávamos nervosos. Desliguei o telemóvel. Qualquer possível almoço que estivesse combinado, ficaria para outro dia.
- Passa no Largo de Camões, se não te importares. Tenho lá o carro.
- A noite foi longa, não foi?...
Fiquei com a sensação de que tinha sido observada a noite toda. O André estava com aspecto de quem não tinha dormido nada e eu preferi não responder. Não queria discutir. O nosso relacionamento estava condenado ao fracasso e eu só queria que ele também compreendesse e interiorizasse que o amor não se repete, pelo menos entre nós.
Continuámos em silêncio. Chegados ao Bairro, entrei no meu carro e invadiu-me uma sensação de tristeza, que de tão profunda, confundi com angústia. Ele estava bonito, bonito demais, parecia abatido, descuidado, por outro lado convicto, seguro, mas preocupado, ansioso, talvez...mas o meu coração estava fechado.
Segui atrás dele, parámos no Guincho, estava um dia frio. O Céu chorava por mim e o mar demonstrava a minha revolta.
A viagem, ainda que curta, apaziguou-me. Fiquei mais calma e entrámos pensativos num restaurante acolhedor. O empregado indicou-nos uma mesa para lá dos olhares alheios, reservada, com vista para o mar. O cenário ideal para partilhar momentos e sorrisos, não para terminar uma relação. Parecia tudo demasiado perfeito, planeado ao milímetro e senti-me desconfortável. O silêncio manteve-se, até o André subitamente quebrá-lo:
- Inês, eu amo-te.
O empregado trouxe qualquer coisa para comer. Não reparei, tinha um nó na garganta e estava longe de me apetecer o que quer que fosse. As palavras do André dominavam o meu pensamento e não sabia o que dizer. Perguntavam-me o que queria beber e eu pedi um chá, quente e calmante. O André pediu vinho. Eu não iria beber, mas não disse nada.
Queria que o empregado ficasse ali para sempre, queria contemplar o mar e a chuva e o dia cinzento e não dizer nada. O silêncio tornou-se acolhedor. Quando me voltei para o André, fixei-me num olhar desesperadamente triste. Eu tinha que dizer qualquer coisa.
- André, não tornes tudo mais difícil.
- Inês, eu amo-te.
- Sabes que nunca foi o amor que nos faltou. Talvez a ponderação, o equilíbrio, a moderação... Já não sei, André. Queria encontrar as palavras certas. Não deixar nada por dizer, nem dizer nada ambíguo.
- Espera, não digas mais nada...vem aí o teu chá...
Respirei fundo. Pensei que desta vez estávamos os dois mentalizados do final inadiável. Há três anos que nos tínhamos conhecido e há dois que parecíamos andar num jogo inconsequente e desgastante, em que saímos sempre os dois perdedores. É verdade que vivemos momentos de intensa paixão, mas éramos muito insensatos e cansativos. Queríamos o melhor de tudo e que tudo fosse perfeito. E depressa caímos em discussões excessivas, em quantidade e intensidade, para rapidamente voltarmos a cair nos braços um do outro. No fundo, tenho a certeza que ambos sabíamos que não poderíamos continuar assim e então fazíamos promessas incertas, que depressa quebrávamos. Um perfeito ciclo vicioso, do qual eu estava irremediavelmente saturada, mas o André parecia querer continuar...
Chegou o chá. Estava mesmo a precisar! Agarrei na etiqueta do saco de chá e agitei. Um barulho estranho fez com que o meu coração batesse mais forte. Olhei fixamente para o André. Comecei a tremer e desejei que não fosse o que eu pensava. Afinal ele não sabia que eu ia pedir um chá e se eu tivesse alinhado no vinho?...
Mas era. Um anel magnífico!
- Casas comigo?
Engoli em seco! Estava ofegante. Não podia chorar, mas as lágrimas estavam perto demais! Um sonho (quase) esquecido tornado realidade! O sítio perfeito, a surpresa desejada, o momento inoportuno. A resposta:
- Não!

VI - Mais uma noite...


Lá dentro, depois do impacto inicial causado pela recepção de Maria, Pedro e João divertiam-se… A musica estava boa, apesar do excesso de volume no sistema sonoro.
Maria estava brilhante, “shining”. Dançava, convivia e bebia, tudo com um sorriso, sem se preocupar com os presentes, igual a ela própria, era normalmente a rainha da festa. Alguns clientes que a julgavam sócia do Bar! Toda a gente lhe falava, toda a gente, mais cedo ou mais tarde, cumprimentava Maria.

Pedro, tentava descontrair, quase à força do whisky que João lhe fornecia! Mas não estava fácil. Lembrava-se da noite de quarta-feira e como ia abordar o assunto, sem magoar, sem dar esperanças, sem ter de ter que se comprometer!

João, depois de uma visita cuidada, não fosse existir por lá alguma “presa” antiga e estragar-lhe os planos futuros de uma noite mais animada, continuava igual a si próprio, mirando e apontando armas a este ou aquele pormenor nas presentes…
- Olha para aqueles olhos! Lindos… E olha aquela ali que pinta!... Gira a miúda!
Sempre com Pedro a aprovar, mas a ficar por isso mesmo… O seu cérebro estava fixo na noite de quarta-feira! Sempre que podia, e sem dar nas vistas, lançava um olhar de soslaio a Maria!
A noite foi acontecendo. Neste intervalo chegou Joana, mais uma habitual presença nos jantares de quarta-feira, a mais nova do grupo, sempre com muitos mistérios… Era arquitecta! João tinha uma implicância com esta arquitecta… Pedro nunca percebeu porquê, aquele não era o género de mulher para João! Era inteligente, culta… Sim e também era gira!

Um pouco mais tarde, Bruno, também do grupo das quartas-feiras, era o especialista em noites! Consigo vinham cinco convites mais desejados naquela noite. Eram os convites para a inauguração do novo bar dançante em Lisboa!

Depois de conferenciarem com Maria e ela decidir que também iria naquele momento com eles. Por muito que custasse a Pedro! Não queria ter de privar com Maria, não queria falar no assunto, se bem que Maria continuava normalmente, como se nada se tivesse passado!
Os cinco abandonaram a “mãe de água” em direcção à festa!
Ainda na porta, já João dizia ao grupo:
- Não se prendam por mim! Se eu me desaparecer é porque estou bem!
Todos se riram, eram normais os “desaparecimentos” de João nas noites da capital! Da capital não! Em todos os sítios João desaparecia…
Lá dentro, efectivamente o espaço estava bem decorado! Muito bem frequentado. Pedro não deixou de reparar no civismo à entrada, no civismo entre fumadores – arredados para uma zona específica – e não fumadores. Tudo muito no lugar! Muito bem colocado em cada sitio.
Enquanto deambulavam pelo bar, João ia catrapiscando daqui e dali um beijinho, um “olá”, uma “festinha”, um abraço! Joana e Maria, também se divertiam, ora dançavam, ora riam, ora comentavam algum aspecto de realce nalgum presente do género masculino que por ali andava. Pedro, já longe dos ressentimentos e dos síndromes de culpa, começava a soltar-se, ele e Bruno riam das parvoíces e de algumas amigas de João!

Estava encostado ao bar a pedir a sua primeira bebida, quando reparou num perfeito exemplar do sexo oposto. Linda, divertida, aparentemente, pelo menos, não conseguia precisar a sua idade, 30 talvez! Estava do outro lado da sala, no outro bar. Porém acompanhada! Observou-a com os olhos verdes e notou que estava acompanhada.
Maria falou a um dos do grupo! Precisamente ao acompanhante. Achou por bem não fazer perguntas! Muito menos a Maria, ela estava calma… Quieta! Era melhor não acordar o “monstro”.

A noite ia longa! João já tinha sumido da linha do horizonte. Maria e Joana continuavam a dançar como se não houvesse amanhã! Bruno também estava de conversa com uma “amiga”, Pedro decidiu sair “à francesa”.

Depois da rápida viagem. Já em casa… Enviou mensagens aos quatro amigos… E ainda antes de sucumbir à inércia que o cansaço, acumulado com o whisky, com as muitas horas que devia à cama, lembrou-se, sem uma certeza de rosto, fisionomia, apenas do brilho que irradiava aquele exemplar perfeito do criador!

V - Amigos Para Sempre



No elevador a caminho da rua agitada do Bairro fizemos um pacto: que seríamos amigos até sempre e tio e tias de todos os futuros bebés daquele trio.


Decidi esquecer o desconforto que sentia e saímos para a rua a sorrir. As pessoas abundavam, o barulho era perto de ensurdecedor e não quisemos entrar em sítio nenhum. Queríamos caminhar, os três, de mãos dadas, apertadas, pelo frio e pela amizade que nos unia, até ao fim. E assim fomos andando. Cheirava a Outono, eu e o Afonso fazíamos planos para o bebé da Margarida. Ela preferia acautelar o entusiasmo e fez de conta que não se importava, ainda, com questões futuras demasiado incertas, mas deixou-nos sonhar: as crianças brincavam todas juntas, muitos sorrisos mágicos e risos de encantar, típicas de gente miúda, e nós, sempre juntos, deliciávamo-nos a olhar...


Chegámos a um bar aparentemente mais calmo e elegemo-lo como a nossa primeira paragem do resto da noite. Era um bar elegante, iluminado à luz de velas e candeeiros tímidos, convidativo a uma conversa e a uma bebida quente. O meu pensamento finalmente descontraiu e abandonou-se no conforto da companhia daquelas pessoas tão especiais.


Fui despertada deste misto de sensações reconfortantes pela Margarida a tentar disfarçar a vontade enorme de ir ter com o Miguel que, pelo que eu deduzi, já se encontrava na tal inauguração do tal bar para a qual tínhamos convites e ela insistia para que fossemos andando para lá.


Depois de apanharmos um táxi, cujo condutor devia estar entre os principais nomeados para o prémio de antipatia, chegámos ao destino, não sem algumas apitadelas, maledicências e gestos menos decentes dirigidos estrategicamente a outros condutores bem mais festivos e afáveis. Mas nada iria estragar esta noite. Muito menos um taxista mal-humorado. Era só o que faltava!


O espaço estava definitivamente bem decorado e frequentado. A música não estava demasiado alta apesar do adiantado da hora, afinal já batiam as 4 da manhã, e tudo parecia existir em cada sítio particular, há tempo suficiente para parecer perfeito. Cada garrafa exposta, cada candeeiro, cada espelho, cada pessoa que esperava pela sua vez ao balcão, cada pessoa que dançava, cada pessoa que olhava... e embati num olhar verde que me observava. Há quanto tempo estaria a olhar para mim? O Afonso queria saber o que eu queria beber e afastei o olhar por segundos, quando voltei a cabeça para olhar de novo, tinha desaparecido!


Inês, não sejas tonta! Esta noite é dos teus amigos. Não estragues tudo com um engate qualquer! O risco do André ligar e querer falar ainda é demasiado grande! Aliás, é quase uma certeza. Pior, vai acabar por ter que acontecer! E voltou a consciência! O efeito de uns olhos verdes numa mulher a precisar de uma paixão autêntica na sua vida! Mas ninguém disse que era fácil.


Uma amiga do Afonso aproximou-se e cumprimentou-o! Ela era enorme, mas com um sorriso arrebatador. Ofereceu-me um “Olá” e disse chamar-se Maria. Retribuí com dois beijos. Falaram pouco e algo sobre trabalho, prometendo falar disso na 2ª feira, na reunião. O Afonso é Director de uma empresa de consultoria de gestão, e ela, pelo que percebi, tinha imensos contactos, conhecia toda a gente e movimentava-se lindamente na noite, mas talvez também de dia. Não percebi, o que ela era, nem profissionalmente, nem para o Afonso, mas também não me apeteceu perguntar! Quem sabe um dia! Mas hoje não! Preferi observar e reparei que espalhava bem-estar, como o Afonso gosta, apesar dos quilinhos a mais, tinha aquela carinha laroca e brilho no olhar, próprios de pessoas de bem consigo mesmas! Parecia que havia conquistado algo, um verdadeiro troféu! E parecia feliz! Verdadeiramente feliz!


E eu também devia estar realmente “qualquer coisa”, porque vários olhares se cruzavam com o meu, sempre prontos a um sorriso e, se possível, a dois dedos de conversa. Mas não voltei a ver aqueles olhos verdes... Para além disso, o mau humor tinha-se desvanecido, encoberto pela encantadora companhia do Afonso que me prometeu que essa noite era minha e a minha noite dele. Éramos amigos, amigos para sempre! E estaríamos sempre presentes, “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte nos separe, amém”.


Preciso de dançar! E arrastei o Afonso comigo, porque a Margarida já se havia perdido nos braços do Miguel há muito tempo.


Até o bar fechar e o sol nascer, perdi-me naquele espaço enorme e a noite foi acontecendo entre danças e copos e mais copos e risadas e músicas e os olhos verdes diluíram-se na memória...

IV - Sem Destino!




Dez e meia da noite de sábado, um sábado fresco, cheio de gente naquela noite castanha de Outubro.

Pedro já estava com João, o amigo inseparável, das noitadas, dos risos e disparates… da vida!
Os dois praticamente da mesma idade… 37 contava o Pedro contra os 34 do João… estilos completamente diferentes, um mais formal o outro mais informal! Ossos do oficio!

Decidiram jantar os dois pelo “Bairro”, se a coisa corresse muito bem cada um retornava a sua casa, se a coisa corresse mal e os copos falassem muito alto João ficava-se a dormir pelo “Bairro” na casa de Pedro!

Nesse jantar do Bairro falaram, falaram e conversaram e beberam, sempre devagar eram dois apreciadores de bom vinho, gente gira, boa comida, mais gente gira e muitas outras coisas, a tribo gay não incomodava, estavam bem em todo o lado! …
Toda a conversa do jantar girou em volta de “Mafaldas”, “Joanas”, “Filipas”, “Carlas”, “Patrícias”, de tudo apareceu um pouco… A certa altura parecia uma reunião de dois conservadores a registar nomes.

Por fim surgiu o nome que se impunha, naquele momento… Maria…
- Aconteceu!?... confessa!
- Pá… não entres nessa… nessa não…
- Comeste! Estás "à rasca"…
- Pá! João, a Maria é só uma boa amiga!... Uma grande e querida amiga!
- Sim e eu sou o pai natal… Deixei as renas no parque mas vou já buscá-las!
- João, foi um acidente, não devia, não queria… A culpa é do Whisky… Muitos copos… Eu estava mesmo a ver!
- Anima-te meu… A sério… Estás vivo… Sobreviveste… isso é bom!
- Como? – Pedro não estava a perceber!
- Meu… Sobreviveste!
- Estúpido! Pá! Que estupidez… – dizia Pedro não conseguindo conter algumas risadas envergonhadas! … - Não fales assim… Na verdade estou “à rasca”, na verdade tenho medo do que a Maria esteja a sentir, nunca mais lhe disse nada! Desde quarta!
- E ela? – A pergunta de João impunha-se, afinal ambos achavam que aquilo não podia acontecer e Maria não devia estar bem!
- Também não! Nem um sms, nem na net… Nada! Estou um bocado sem saber o que fazer ou dizer!...
- Deixa ir... deixa andar - João tentava acalmar um Pedro nervoso, mais medroso do que nervoso!

A conversa continuou, entre muitas risadas, algumas confissões de ambos os lados, alguma palermice à mistura, a palermice de dois homens que se conhecem bem, para confessarem aventuras, paixões e lágrimas um ao outro!

Chegaram ao fim do jantar com uma leveza no espírito, prometendo mais jantares assim: “Mesmo quando fossem velhinhos, casados – o João dizia que não – e avós de uma série de netos!”.

O destino seguinte era não ter destino!

Uma volta por ali, ver quem passa, quem está… Rir mais um bocado!... Ver… Olhar e observar… Ser visto!

Nenhum dos dois tinha compromissos, melhor… Pedro estava sem compromissos amorosos, João tinha compromissos pelos dois e por mais dois ou três… Mas tudo feito “à maneira” como costumava dizer! Sem que ninguém se zangasse com ninguém! Tudo longe dos sítios onde habitualmente se movia, longe...


Pedro conhecia duas, uma Sofia… Morena, alta… nunca percebeu muito bem o que o amigo tinha visto naquela Sofia, mas ok. E uma Madalena, gira… Talvez a miúda mais gira que Pedro conhecia, mas infelizmente, muito mais nova. Vivia para a moda, a moda quotidiana, a moda fútil, a moda desprovida de miolo, de conteúdo, oca! Pedro não tinha por hábito comentar as namoradas dos amigos, normalmente fazia um esforço para gostar de todas. E para que se sentissem as únicas, principalmente no que se referia a João!


Pararam num bar, onde a tribo dos “intas” pára e por ali permaneceram em mais conversas, desta vez o assunto era trabalho. Pedro preparava-se para assumir novas funções, mais responsabilidades, mais trabalho. João assumia-se como Produtor, a vida começava a andar. Calmamente!


Saíram do Bairro e foram para o bar onde sempre paravam, a “mãe de água” como carinhosamente chamavam a duas salas com pouco mais de 120 metros quadrados era o local onde normalmente terminavam a noite, salvo raras excepções, essa noite podia ser uma delas… Tinha inaugurado um novo sitio de animação nocturna… era um bom sitio para ir… João gostava destes espaços novos… “São bons locais de caça” – dizia em tom de brincadeira!


Desceram, com o frio sempre a refrescar o passo, já perto da uma da manhã chegaram à mãe de água mais lotada de Lisboa. Subiram os degraus e depois dos habituais cumprimentos na porta entreaberta...
Já no hall de entrada, João dá uma risada e o Pedro apenas diz:
- Fogo! – entre os dentes, para o amigo – Olá Maria!

III -Mais Vinho?




- Bem!...Para quem queria um jantar caseiro e miminhos dos amigos, vens poderosíssima para uma noite imprevisível, sem horas para acabar e tudo menos no sofá. Estás linda, Inês! Onde compraste o vestido?
- Afonso, hoje não! Vim assim porque sou prevenida. Se vocês desistirem da ideia de sair, visto de imediato um pijama teu!
- Ui, como ela está hoje! Deslumbrante, mas mal-humorada! Mais uma tentativa de separação do André?
- Desta vez definitiva! Mas sei que só vou conseguir provar isso com o passar do tempo! Falemos de outras coisas...Que mesa fantástica! Esmeraste-te! Estou proibida de me chatear contigo. Mereces uma companhia à altura desta mesa repleta de coisas boas demais! A Margarida?
O Afonso alimenta-se de vida, aliás, de boa vida. Ofereçam-lhe beleza, decoração, roupas, música e têm alguém muito feliz! Sempre bem disposto, desde que tenha ido ao cabeleireiro, ao spa, ao melhor restaurante, ao local mais in.
- Ainda não chegou. Está com o “é-só-para-passar-um-bom-bocado”. Acho que essa história está a ficar séria. Mas não deve tardar. Vinho?
- Sim, muito, meu querido!...
E pisquei-lhe o olho. A Margarida apaixonada! Que bom! Que inveja! Que saudades!
- Vou abrir, deve ser ela!
- Meus amores, cheguei!
- Que brilho que irradias! Queres vinho?
Afinal eu estava especada à porta de copo na mão.
- Não, hoje não!
- Então prepara-te, porque vais estar completamente sóbria, quando eu e o Afonso já estivermos na fase dos disparates! E tu sabes naquilo que nos transformamos quando estamos juntos, não sabes? Bem, tu estás com um sorriso inspirador! Afinal qual é a surpresa?
- A surpresa, é surpresa!
Eu já não estava a aguentar mais! Tanta felicidade por metro quadrado de um T1 no Bairro Alto e sem motivo aparente. O Afonso, sempre preocupado com a imagem, sempre de bem com a vida, mas de espírito crítico fervoroso, optimista e decidido, um amigo fantástico, o melhor amigo. A Margarida, mais simples e pragmática, independente e muito segura de si: apaixonou-se! E eu ainda com vontade de chorar, desabafar, comer, beber...Ah! Vou fumar! Enquanto a força de vontade não supera este maldito vício!
A meio do jantar, depois do meu desabafo e da minha certeza de separação definitiva, a Margarida continuava a brilhar. Nunca os seus olhos azuis haviam cintilado daquela forma e mesmo depois da confissão do meu teste negativo, não se conteve mais:
- Estou grávida!... E super feliz! Desculpa, Inês! Soube há três dias! Aconteceu! O Miguel está delirante! Felicíssimo! Adorou a história do “preservativo descosido” e a minha despreocupação e optimismo do “não vai acontecer nada e esquece lá a pílula do dia seguinte, que mais parece uma tentativa de overdose hormonal”.
Devo ter ficado com um ar! Para ela se desculpar e justificar desta maneira.
- Não me peças desculpa, por favor! Parabéns do fundo do meu ser... e desatei a chorar!
De emoção, felicidade por ela, tristeza por mim, outra vez aquela mistura insensata de sentimentos confusos. O Afonso, muito prático, abriu uma garrafa de sumo de maçã, encheu três copos de shots, e brindámos à futura mamã, aos futuros papás, ao bebé, aos sonhos, ao imprevisível... e decidimos sair!

II - Nunca Mais...





- Porra! … São 11 da manhã! Merda… Tenho de ir trabalhar e não me apetece… Ui que dor de cabeça – ainda de olhos fechados Pedro começava lentamente a sentir… Se é que para além da dor de cabeça, sentia mais alguma coisa…

- Onde é que eu realmente estou! Ah Maria… Maria… - na realidade a Maria, esta Maria dormia ainda ao lado do Pedro! – É pá não… eu não fiz isto… nunca mais bebo… nunca mais bebo muito… nunca mais bebo muito whisky… Nunca mais… Nunca… Sei lá!

Era hora de levantar e de tratar de sair dali o mais depressa possível, preferencialmente sem que Maria o visse, sentisse ou pior tocasse… Outra vez!

Pedro levantou-se e muito rapidamente – tanto quanto o corpo permitia - foi para a sua higiene diária!

Nem queria acreditar que aquilo tinha acontecido! Que aquilo tinha acontecido com a Maria! A Maria não… é mau demais, há muito que tinha definido que não haveria nada mais que uma amizade… Aquilo passava das marcas da amizade!

Na realidade Maria era uma amiga recente, amiga da amiga de uma amiga, logo no primeiro momento Pedro sentiu ali um interesse dela, nele, ele não queria, nunca quis.

Maria era muito grande, grande demais para um Pedro alto e magro. Maria era baixa e bem volumosa, tentava tirar algum volume ao seu corpo, mas isso ainda não era agora, muito embora tivesse uma beleza exterior muito grande, não faltava nada, havia a mais e não era só volume, pelo menos para Pedro!

Pedro andava desde o fim do Verão a fugir desta noite a dois com Maria, que insistia, insistia, zangava-se, insistia… mas Pedro ia conseguindo fugir!... Ia conseguindo… Não conseguiu!

Conseguiu sair da casa de Maria, pelo menos era o que ele achava, descer no elevador, com a higiene possível feita um bocado à pressa. Quando saiu para a rua o sol queimou-lhe os olhos verdes e impediu que durante quatro segundos não percebesse sequer em que raio de rua estava. Quando a visão se recompôs descobriu em simultâneo um café e o seu carro… Finalmente estava a “salvo”… Salvo pela bica para o fazer acordar, salvo porque fugir dali era o seu segundo objectivo!

Com o café tomado e o rádio na estação mais perto do mar, Pedro dirigia-se para Lisboa, escolheu ir pelo caminho mais longo, descer à marginal e seguir pela beira-mar. Nesse caminho foi pensando o que realmente tinha acontecido na noite passada.

- Possa, era quarta-feira… jantámos todos juntos!

Jantaram cerca de oito pessoas à mesa era verdade… Entre homens e mulheres aquele grupo de amigos costumava reunir-se com alguma assiduidade… E saíam para conversar, beber um copo. Todos sabiam que ao primeiro romance aquele grupo acabava! Ou pelos menos era o que Pedro achava! Abriu a janela para o primeiro cigarro e respirar aquela brisa fria do mar! E continuava a sua reconstituição da noite. Já com a Torre de Belém à vista lembrou-se da reunião que tinha ao almoço, era suposto mudar de emprego ou de função no emprego. Não podia ir assim vestido apesar do banho e de algum bom aspecto, a roupa era do dia anterior e exalava um cheiro a fumo, nada agradável! Aliás esse cheiro a fumo e a ressaca que Pedro tinha eram as duas únicas provas de uma noitada… tudo resto… estava normal!...

Tudo ou quase tudo!

I - Negativo!


Deu negativo! Ainda bem! O relógio biológico já toca, já tocou, está farto de tocar! Mas é melhor assim, afinal o pai seria...o meu acto falhado! Acabámos de acabar e nunca iria dar certo.

Preciso deles! Dele e dela. Vou combinar qualquer coisa. Não consigo estar sozinha.. Os pensamentos confundem-se, quero pensar em tudo menos no que não paro de pensar!...ou em nada! O melhor seria mesmo pensar em nada, o vazio, uma mente livre de interrogações, recriminações... Estou farta desta sensação de que poderia (ou deveria) ter feito tudo de outra forma.

Porque será que continuo a insistir na procura do Amor? E enquanto não encontro a pessoa certa, vou-me divertindo com as erradas? Então porquê este sentimento de culpa? Esta sensação de derrota? Estou com 35 anos e emocionalmente vazia...

A vida deveria ser como nos sonhos, imprevisível, mas irreal, confusa, mas imaginária, descoordenada, mas efémera, basta acordar! E depois não é preciso lidar com nenhuma consequência de nenhum acto falhado ou impensado. Basta voltar a dormir e tentar continuar a história, se nos agradar, ou evitar se não valer a pena.

Está a chamar!

- Estou sim, Margarida, preciso de vocês! Consegues reunir o trio? Vamos jantar, lanchar, cear. Qualquer coisa! Mas preciso mesmo de vocês! Estás livre no sábado? Ou ainda andas numa de paixão com o “é-só-para-passar-um-bom-bocado”? Quero-vos só para mim!!!...

- Outra crise existencial, Inês? Vou ligar ao Afonso e não te preocupes com mais nada. Sábado está óptimo para mim e prepara-te que tenho uma surpresa...

- Espera! Acho que preferia um jantar com vocês os dois, regado com um excelente vinho, uma lareira acesa, pantufas e pijamas...

- Oh careta! Vamo-nos aperaltar e vamos à inauguração de mais um espaço nocturno Lisboeta. Tenho convites...

- Hummm, não sei! Combina o jantar com o Afonso e decidimos na altura. Beijos gigantes. Adoro-te!

Preciso de paixão na minha vida. É isso! Só me volto a envolver com alguém quando estiver verdadeiramente apaixonada, quando tudo fizer sentido, quando voltar a sentir as borboletas a voar, dentro de mim, algures no estômago e perto do coração. “Quem não vive um amor extraordinário vive uma pura perda de tempo”... e eu estou tão farta de perder tempo...Já não sei onde li esta frase, talvez a legendar uma fotografia de um casal apaixonado, num site qualquer. Vou à net! Bombardear a mente com informação! Tudo é melhor do que pensar no bebé que nunca foi!

Não vou dizer nada ao André! Afinal ele também estava a léguas de distância do meu atraso, das dores nas costas, das mamas desproporcionalmente inchadas, do desejo estranho de querer e da vontade maior de (ainda) não (poder) ser. Não com ele! Ele está na dele, na mais pura ignorância dos meus sentimentos e longe de se aperceber desta confusão mental. Se pudesse, nunca mais o voltava a ver! Não me apetece ouvi-lo, tocar-lhe, senti-lo... Será que ele ainda não percebeu que entre nós não faz sentido? Porque continuamos a insistir e a adiar o inevitável: a separação, seguida de uma eventual amizade, talvez distante. Não, com o André é tudo definitivo, mesmo que nunca o venha a ser. Espero que ele não me ligue! Vou desligar o portátil, o telemóvel, qualquer ligação ao mundo. Não consigo deixar de pensar!

Vou tomar um banho, mergulhar na espuma e ondular-me na luz das velas e chorar, preciso de chorar!