XI - A vida em Russo



Esta semana passou a correr! Muito trabalho, concentração e a companhia do meu querido Zoya fizeram milagres ao estado de apatia em que me encontrava perante a vida, o amor e os homens!

Já é quinta feira, estou a aguardar que o Viktor Nikolaevich se digne a receber-me. E já estou farta de esperar! Mas é um cliente importante e o projecto de decorar o seu novo restaurante é demasiado aliciante para eu não ceder aos seus caprichos e atrasos. Além disso, às nossas eternas conversas lhe devo o nome do meu querido Zoya. Vou ligar ao Afonso para saber se o Zoya se tem portado convenientemente. Tinha saído de casa bem cedo e não tinha horas para chegar a casa nessa noite e, como o Afonso estava doente, a recuperar de uma amigdalite, em casa, ofereceu-se para ficar a tomar conta do Zoya que já conquistou todos os meus amigos.

- Olá Inês! Peço desculpa pelo atraso! Com certeza está farta de esperar!

- Olá Viktor! Não se preocupe, aproveitei para colocar a agenda em ordem e trabalhar no nosso projecto.

(Ligo ao Afonso mais tarde...)

- Inês, já sabe que o espaço, e não me canso de o recordar, tem que impressionar não só pelo serviço e qualidade, mas também pela decoração. Vamos lá ver o que me trouxe.

- Claro, tenho feito inúmeras pesquisas e trago comigo várias opções para debatermos.

- Vamos entrar para o escritório e beber um chá.

Nem sempre consigo perceber o Viktor à primeira. Tem aquela pronúncia de leste inconfundível, mas bastante perceptível dado o pouco tempo que passa em Portugal. Ele é charmoso, deve ter cerca de 50 anos, cabelo grisalho, olhos claros e não é muito alto. Costuma falar de uma mulher, que nunca vi e não sei se é casado. É bastante atencioso. Já me disse que para ele as mulheres são peças de porcelana que devem ser tratadas com bastante deferência devido à sua natureza delicada. Mas também já tive oportunidade de o ver furioso, ao telefone, bastante exigente com a arquitecta do projecto, à qual já estive para ser apresentada, mas que ainda não se concretizou e torna-se cada vez mais urgente, afinal os nossos projectos têm que estar em sintonia. Se tudo correr como planeado iria conhecer a Arquitecta Joana de Sá nos próximos dias.

Quando conheci o Viktor, totalmente por acaso, num restaurante russo, achei curioso a sua forma de estar e agir. Cumprimentava toda a gente, dirigia-se a cada mesa em particular e dispensava toda a atenção e interesse a cada um dos clientes. Quando chegou à nossa mesa, já bastante festiva, ou não estivesse eu acompanhada do Afonso e da Margarida nessa noite, Viktor Nikolaevich fez o ar mais cansado do mundo e sentou-se no único lugar disponível na mesa de 4 lugares. Perguntou-nos o que tínhamos comido, se tínhamos gostado, se o atendimento tinha sido de qualidade... E eu desatei a falar, da comida, da empregada, da vodka, de tudo, mas principalmente da decoração que me fascinou desde o momento que entrei no restaurante e ainda me lembro de ter dito que isso era o mais importante, uma vez que "não há segunda oportunidade para a primeira impressão". Depois disso, a conversa parecia não ter fim. Ficou a saber que eu era decoradora e que tinha uma empresa, com outro sócio, o Arquitecto Francisco Mello. Falou-me, então, do seu projecto para um novo restaurante russo em Lisboa e quis marcar uma reunião comigo. Claro que todos os segredos foram desvendados mais tarde. Mas naquela noite, a voz daquele homem hipnotizou-me e fiquei aprisionada àquela ideia e com uma vontade imensa de fazer parte daquele sonho. Nessa noite, fui para casa pesquisar sobre tudo o que estivesse relacionado com a Rússia: história, cultura, geografia, demografia, economia, política...deitei-me com o sol nascer!

Muitas reuniões se seguiram a esse encontro. Normalmente a conversa decorria entre chá e blinis (panquecas russas) e outros pastéis. Quando o Viktor me falou no que pretendia, achei extraordinário. O seu projecto consistia num "restaurante secreto". Ele viajava com bastante regularidade para os Estados Unidos da América, principalmente Nova Iorque e tinha acesso privilegiado a um "bar secreto", como membro de um clube privado. Para lá entrar tinha que fazer uma reserva através de um sms, cujo número de telemóvel é alterado todos os meses e só quem faz parte da lista do clube recebe os novos números. Em Nova Iorque, começa a ser comum este tipo de locais secretos, mas em Lisboa a ideia ainda é uma novidade e ele queria ser dos primeiros na nossa capital, mas em russo.

Depois da reunião, mais uma vez com muito chá, notei que o Viktor ficou impressionado com as minhas ideias e com as várias alternativas que lhe mostrei.

- Inês, vou combinar com a Joana a nossa próxima reunião e depois ligo para si, para finalmente se conhecerem e começarem a trabalhar no projecto juntas. Ah! E tenho uma proposta de uma viagem a Moscovo para vocês, mas sobre isso falaremos depois. Já é tardíssimo e tenho que sair.

Sempre misterioso...

- Fico a aguardar o telefonema, Viktor! Vou pensar nessa viagem! Sabe que eu agora tenho um cão, o Zoya, já sabe onde fui buscar inpsiração para o nome. E não gostava de o deixar num hotel ou pensão ou qualquer coisa desse género para cães. Mas penso que entre amigos e família, alguém ficará com ele. De qualquer forma, vou ter que pensar e ajustar a minha vida nesse sentido. Vou continuar a trabalhar no projecto e conciliar os aspectos que seleccionámos das várias hipóteses que lhe mostrei numa só. Chega de dispersões, vou arrumar as ideias.

- Sou eu Afonso, a Inês!

- Nem vais acreditar no que aconteceu!

- Zoya, meu querido, que saudades!!!

Realmente os cães são maravilhosos. Abandonei-o um dia inteiro aos cuidados do Afonso e no nosso reencontro parecia que não me via há mais de um mês. E estava lindo! Vestido com "algo" que o Afonso lhe comprou, com um padrão fantástico, tudo a condizer com o pelo escuro.
- Conta lá, o que aconteceu?

- Acertaste em cheio no nome deste cão: Vida! Há pouco fui com ele à rua, a uma loja especializada no bem estar e conforto dos animais, para lhe comprar este fato. Quando voltámos, abri a porta de entrada do prédio e o gajo pirou-se escada acima! Duvidei que ele soubesse o andar e a porta correctos e fui atrás dele, mas depressa o deixei de ver! Tive que correr todos os andares, um a um, e já estava a desesperar, quando dei com ele à porta de casa de um vizinho, lindo de morrer, nem eu sabia que morava tão perto de uma obra de arte daquelas, que já andava com ele ao colo, de robe, sem saber o que fazer!