IX - Ponto final. Virei a página...


Ainda consigo recordar todos os pormenores daquele domingo:

Quando voltei a ligar o telemóvel, despertei no mundo real. As mensagens denunciavam tentativas de contacto, preocupações, almoços em que não estive presente. A chuva continuava a cair e pedi a conta.

Estava sozinha no restaurante há cerca de uma hora, ou seriam duas? Nem sei, tinha perdido a noção do tempo, da vida, do mundo. Durante esse período apenas existi, não sei bem como. O André tinha saído, depois do “não”, do meu não, com o orgulho esmagado e com um olhar que eu não queria recordar. Simplesmente saiu, sem dizer nada. Por instantes temi que poderia ter ficado algo por dizer, explicações por dar, razões por compreender e que a necessidade de outro encontro se impusesse. Depois percebi que a história, que a nossa história, minha e do André, juntos, com tanta paixão, sorrisos e felicidade, contrariados por despeito, lágrimas e angústia, tinha chegado ao final e chorei, sozinha.
Os empregados foram suficientemente discretos e aguardavam um sinal meu, que tardou, e nesse espaço de tempo que não sei precisar e onde apenas existi, deixei-me levar para bem longe pelo meu pensamento e cheirei, senti e saboreei cada momento que tinha vivido com o André.

Comecei a responder às mensagens, a conta não chegava e eu estava a começar a ficar impaciente. Depois lembrei-me que não tínhamos comido nada, havia um chá na mesa e...o anel! O anel do meu noivado, que eu não queria meu! Guardei-o na carteira e pensei que talvez um dia, mais tarde, escrevesse ao André e com essas palavras devolveria o Anel. Não me preocupei mais, ainda tinha que passar algum tempo.

Paguei o chá e saí. De regresso a Lisboa, pela A5, a chuva intensificava-se e eu queria chegar depressa a casa. A música não ajudava e escolhi uma frequência que bombardeasse a minha cabeça com informação e o André começou a diluir-se no meu pensamento. Permanecia apenas e ainda, e penso que para sempre, o porquê da tentativa de uma conquista impulsiva, uma espécie de última cartada, mas que implicava uma decisão para toda a vida.

Deixei de ouvir o rádio e até chegar a casa, pensei: o passado não se anula, interioriza-se, recorda-se e serve, sobretudo, para se aprender a não cometer os mesmos erros e a nossa história já tinha demasiados. A felicidade não se encontra na repetição de actos insensatos, mesmo que na procura de momentos inesquecíveis, encontra-se no equilíbrio, na estabilidade e na harmonia constantes de um relacionamento. Tive o meu futuro nas mãos e tomei uma decisão. Não poderia viver o resto dos meus dias ou grande parte deles influenciada apenas por um acto romântico.

Ponto final. Virei a página...

Estacionei o carro na garagem. Continuava a chover, mas decidi ir à pastelaria mais próxima comer qualquer coisa. Ao sair do prédio deparei com ”qualquer coisa” à entrada, demasiado enrolada e escura para perceber de imediato o que era. Aproximei-me e “a coisa” levantou a cabeça e dirigiu-me o olhar mais meigo e suplicante que alguma vez olhou para mim. Um cão (ou cadela). Ainda não sabia. Mas não hesitei nem por um momento e levei-o para casa.

Não tinha coleira, estava muito mal tratado e magro. Tentei examiná-lo e percebi que tinha uma pata traseira ferida, mal se aguentava de pé. O pelo, todo preto, estava num verdadeiro desalinho. Levei-o ao veterinário, salvei-lhe a vida e fiquei a saber que teria cerca de dois anos. Na zona, ninguém o reclamou.
Ainda me lembro de como aquele olhar despertou em mim uma força para viver, para vivermos, os dois, e chamei-lhe Zoya, Vida, em Russo.

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